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STJ decide que Forças Armadas não podem afastar militares por transição de gênero
Atualizado em 19/11/2025
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ decidiu que as Forças Armadas não podem afastar militares de suas funções somente por serem transsexuais ou estarem em transição de gênero. A decisão unânime uniformiza o entendimento do STJ sobre o assunto e vincula todas as instâncias inferiores, que ficam obrigadas a seguir o entendimento.
Foram acolhidos os argumentos da Defensoria Pública da União – DPU, que representou militares do Rio de Janeiro obrigados a tirar licenças médicas em razão de sua transexualidade. O grupo já havia conseguido vitória na segunda instância da Justiça Federal, mas a União recorreu ao STJ, em nome das Forças Armadas, sob o argumento de que o ingresso nas fileiras militares prevê condições de gênero claras e permanentes.
Os ministros do STJ afastaram o argumento, afirmando que, por decisão em definitivo, o ingresso por vaga destinada ao sexo oposto não pode servir como justificativa para afastamentos de qualquer tipo.
Relator do tema, o ministro Teodoro da Silva Santos concluiu que a “condição de pessoa transgênero ou o processo de transição de gênero não configuram, por si sós, incapacidade ou doença para fins de serviço militar”.
Com a decisão, fica proibida também a condução de qualquer processo de reforma compulsória ou exclusão que se baseie na mudança de gênero. Além disso, todos os registros e comunicações internas devem ser atualizados para usar o nome social dos militares trans.
Jurisprudência
A advogada Chyntia Barcellos, presidente da Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM, explica que a decisão, pela relevância do tema, foi tratada no STJ como Incidente de Assunção de Competência – IAC, o que significa que é uma decisão vinculante e deve ser aplicada uniformemente por qualquer juízo federal ou tribunal regional que julgar caso semelhante.
Segundo a especialista, a posição firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao vedar a reforma ou o desligamento de militar transgênero em vaga originalmente destinada ao gênero oposto, afasta a possibilidade de que qualquer caso futuro judicializado tenha entendimento contrário ao que o STJ acabou de decidir.
“Com essa decisão, fica pacificado que identidade de gênero não é incapacidade; transição de gênero não justifica licença compulsória; e ingresso por vaga correspondente ao ‘sexo atribuído no nascimento’ não pode fundamentar punições. Militares transgênero somente poderão ser afastados(as) nos mesmos moldes das pessoas cisgêneras, conforme regulamento próprio das Forças Armadas. Não existe mais espaço para essa atitude discriminatória”, esclarece.
Ainda segundo a advogada, é medida imprescindível que as Forças Armadas adéquem internamente seus procedimentos de acordo com o que foi decidido no IAC 20 (REsp 2.133.602), em atenção aos princípios constitucionais da legalidade e da eficiência (art. 37 da CF/88). “Isso pode evitar judicialização em massa, condenações, retrabalho administrativo e custos estatais desnecessários, além de garantir dignidade e igualdade às pessoas trans.”
Identidade
De acordo com Chyntia Barcellos, a decisão é revolucionária e muito esperada pelo movimento social de pessoas trans, em especial pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA.
“Na prática, militares transgênero não podem mais ser reformados(as) em razão da identidade de gênero, colocados(as) em licenças médicas forçadas por juntas de saúde em razão da transição hormonal ou responderem a processos disciplinares por sua identidade de gênero. Merecem, assim, tratamento justo e antidiscriminatório no ambiente de trabalho”, avalia.
Chyntia também destaca que as Forças Armadas são obrigadas, de imediato, a respeitar o uso do nome social, atualizando assentamentos funcionais, fichas internas, listas de chamada, bem como todo e qualquer documento administrativo. “Nome social é o nome com o qual a pessoa trans se identifica, independentemente de ter alterado seu registro civil de nascimento.”
No que se refere ao assédio moral institucional, ela observa que militares trans não poderão ser rebaixados(as), desviados(as) de função, receber punições ou ter restringido o direito de ascensão hierárquica.
Luta contra a discriminação
Para a advogada, a decisão representa um marco na luta contra a discriminação de pessoas trans. “Além de vincular todas as decisões do país envolvendo pessoas trans e as Forças Armadas — um dos ambientes mais normativos e resistentes às mudanças — esse entendimento contribui para a despatologização das identidades trans, pavimenta o reconhecimento de que os direitos de pessoas trans e travestis são direitos humanos e reafirma a decisão da ADI 4.275 do STF, que proibiu qualquer discriminação baseada na identidade de gênero.”
“Reforça, ainda, a necessidade de um direito antidiscriminatório em sentido amplo, que proteja e repare minimamente e legalmente a dignidade dessas pessoas, que suportam e vivem barreiras dos mais diversos vieses sociais e institucionais em nosso país — barreiras invisíveis e inimagináveis para a grande maioria das pessoas cisgêneras”, complementa.
Na visão da especialista, a decisão do STJ dialoga profundamente com os princípios constitucionais, pois preserva a proteção de militares trans e travestis nas Forças Armadas contra discriminações no exercício de suas funções. “Também reforça o papel do trabalho e do serviço público como meios de inclusão, equidade, dignidade e mobilidade social, sobretudo em um país onde grande parte dessa população se encontra em vulnerabilidade socioeconômica e fora do mercado formal de trabalho.”
Ela conclui: “Ao reconhecer as identidades trans nas Forças Armadas, o STJ reafirma a dignidade da pessoa humana como valor supremo; ao impedir afastamentos e reformas compulsórias, cumpre o objetivo constitucional de eliminar preconceitos e promover igualdade material; ao assegurar que militares trans devem ser tratados como qualquer outro servidor, reafirma a igualdade formal perante a lei; e, ao vedar práticas discriminatórias, concretiza o dever estatal de prevenir e punir discriminações odiosas”.
“Assim, o STJ materializa constitucionalmente que todas as pessoas — especialmente pessoas trans e travestis — possam trabalhar, viver com respeito, proteção e cidadania plena”, finaliza Chyntia Barcellos.
Por Débora Anunciação
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